PAIXÃO, CIÚMES E RELAÇÕES DE GÊNERO: UM CRIME NO CONTEXTO DA ESCRAVIDÃO

PÂMELA CERVELIN RASSI, ROBERTO RADUNZ

Resumo


Em 1864, na então Vila de Santo Antônio da Patrulha, interior da Província Rio Grande de São Pedro do Sul, o escravo Eduardo foi acusado pelo crime de homicídio da forra Raquel Maria de Novaes. Eduardo mantinha relações de concubinato com a jovem Castorina que morava com Raquel e, numa situação de ciúmes pelo convívio dela com outro homem, cometeu agressões contra as duas. A presente pesquisa retrata, a partir do processo-crime envolvendo Eduardo, Castorina e Raquel, aspectos das relações sociais estabelecidas no contexto da sociedade escravista da segunda metade do século XIX. Com a preocupação de expor as representações sobre as relações de gêneros contidas no processo criminal, discute-se as práticas relativas à sexualidade e a afetividade compartilhadas por setores populares da sociedade, como escravos, forros e agregados, e o caráter de crime passional cometido pelo réu Eduardo. A metodologia é constituída da transcrição e da análise do processo-crime do acervo do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, dialogando a legislação que vigorava no período. A historiografia sobre a temática completa núcleo da pesquisa, com a abordagem histórica sobre o processo judicial. Os principais resultados evidenciam as relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres e intermediadas por instituições sociais. Na reconstituição da cena do crime, os discursos proferidos pelas testemunhas constatam que as agressões cometidas por Eduardo foram motivadas por ciúmes. O escravo torna duas mulheres suas vítimas, incluindo a sua companheira. Embora os crimes passionais não figurassem de forma explícita no Código Criminal de 1830, o comportamento do escravo Eduardo demonstra que é passível constituí-lo enquanto um crime de paixão. As relações que Eduardo mantinha com Castorina eram caracterizadas pelo concubinato, ou seja, relações afetivas estabelecidas à margem do matrimônio. Na descrição jurídica, eram declarados como solteiros, pois o casamento perante o Estado era consagrado pela Igreja Católica. Da mesma forma, a linguagem jurídica atestava a Raquel o estado de viuvez, no entanto os depoimentos registravam que na sua vida afetiva ela era concubina de Joaquim Martins. Ainda sobre as relações de poder fundadas sobre diferenças de sexo, somente quatro mulheres compunham o universo de personagens no processo-crime: duas são vítimas e as outras duas são testemunhas. A legislação imperial, por meio do Código Criminal, indiciou o escravo Eduardo pelas agressões cometidas nas vítimas e as circunstâncias agravantes delas decorridas. Acusá-lo de crime passional não era possível pelos procedimentos do judiciário, pois esse crime tornou-se juridicamente qualificável somente na década de 30 nos anos novecentos. A pesquisa integra o projeto Da Lei de Terras ao Êxodo Rural: a relação entre latifundiários, colonos, escravos e libertos na Serra Gaúcha (1850 1950), da Universidade de Caxias do Sul.


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