OS LIVROS DE REGISTROS DOS SABERES COMO INSTRUMENTO APTO A IMPULSIONAR A CONCESÃO DE NOVAS INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS

Bruna Hundertmarch, Josias Michel Schott

Resumo


O Brasil, em razão de sua posição geográfica favorecida, possui território ecologicamente rico. Essa situação propicia o surgimento de diferenças culturais em virtude das variadas formas de interação do ser humano com a natureza e vice-versa, demonstrando que não é possível ter uma visão dissociada desses dois elementos. Esse conjunto de riquezas naturais e culturais, nomeado sociobiodiversidade, merece especial atenção, visto que a ausência de estudos específicos que objetivem proteger a aludida relação implica risco de devastação da natureza, bem como de perecimento cultural.

Diante dessa perspectiva, os diferentes modos de fazer passaram a receber uma proteção jurídica. A Constituição Federal protege o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a cultura, bem como o patrimônio, o qual se divide em duas espécies, material e imaterial. Apesar de não se ignorar referida divisão, o presente estudo deter-se-á na análise da propriedade imaterial.

Os bens imateriais abarcam as mais variadas formas de saber, fazer e criar, as quais são protegidas pela Constituição Federal, que prevê, de forma nominal, três instrumentos para a proteção do patrimônio cultural imaterial – tombamento, registro e inventário. Contudo, não se trata de um rol taxativo, uma vez que a própria Constituição Federal determina que o poder público deve estabelecer, conjuntamente com as comunidades, outras formas de acautelamento e preservação desse patrimônio.

Nesse contexto, emergiu um novo instrumento: a indicação geográfica. Tal instituto não é previsto constitucionalmente, mas tem potencial de se tornar um mecanismo propício a proteger o patrimônio cultural imaterial.

A indicação geográfica é parte integrante do diploma jurídico da propriedade intelectual que está disciplinada na Lei nº 9.279/96. Segundo essa lei, o instituto em comento se presta como um instrumento apto a agregar valor a produtos e serviços provenientes de regiões específicas, conferindo notoriedade não só ao produto, mas também à área geográfica delimitada.

Diante disso, objetiva-se com o presente trabalho investigar em que medida o Livro de Registro dos Saberes instituído pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, pode se prestar como um mecanismo apto a angariar novas regiões com potencial de reconhecimento do signo distintivo das indicações geográficas, bem como de que forma poderia se fomentar o registro do signo distintivo em voga.

Para o cumprimento do objetivo proposto será utilizado o método de abordagem dedutivo. Isso porque se parte de uma conexão descendente, posto que, inicialmente, analisar-se-á a cultura e o patrimônio cultural para, em um momento posterior, direcionar-se à apreciação do instituto da indicação geográfica, buscando a possível imbricação entre ambos.  Como método de procedimento adotou-se o método histórico, o qual se mostra apropriado a fim de analisar a evolução histórica do instituto das indicações geográficas, bem como do patrimônio cultural.

As indicações geográficas, signos distintivos capazes de agregar valor a produtos e serviços provenientes de regiões delimitadas, despontam como um mecanismo jurídico de promoção do desenvolvimento econômico local, instituto integrante do diploma da propriedade intelectual.

A importância do referido instituto deve ser pensada enquanto mecanismo de proteção do patrimônio cultural imaterial. Isso porque, ao se considerar que o patrimônio cultural representa o legado de uma dada população e que sua destruição importa o desaparecimento do legado histórico de um povo, é importante utilizar-se de mecanismos eficazes a fim de combater os riscos de perecimento a que esses estão expostos, graças ao processo de globalização.

No âmbito internacional, as indicações geográficas são regulamentadas pelo Acordo Trips, também conhecido como Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC) firmado no domínio da Organização Mundial do Comércio (OMC) e introduzido ao sistema jurídico brasileiro pelo Decreto nº 1.355/94.

O artigo 22 da seção 3, parte II do Acordo Trips, define as indicações geográficas da seguinte forma:

As Indicações Geográficas são indicações que identifiquem um produto como originário do território de um Membro, ou região ou localidade deste território, quando determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica.

 

Sob influência direta da internalização do Acordo Trips, foi publicada no Brasil a Lei nº 9.279/96, disciplinando a propriedade industrial, que se refere às patentes de invenção, modelos de utilidade, desenho industrial, marcas e indicações geográficas.

A Lei nº 9.279/96, no seu artigo 176 e seguintes, dispõe acerca das duas espécies de Indicações Geográficas, quais sejam: as indicações de procedência e as denominações de origem, assim definidas:

Art. 177. Considera-se indicação de procedência o nome geográfico do país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço.

Art. 178. Considera-se denominação de origem, o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusivamente ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos.

 

O cerne da indicação geográfica como gênero é o conhecimento da região como centro de extração, produção ou prestação de um determinado produto ou serviço. Entretanto, para que a região obtenha o reconhecimento como indicação de procedência, não é necessária nenhuma outra exigência, ou comprovação de qualidade ou singularidade, ao contrário do que ocorre com a denominação de origem, a qual prescinde de elementos naturais e humanos.

Nesse aspecto, também merece destaque o sistema de registro de bens culturais imateriais, instituído pelo Decreto nº 3.551/2000. Isso porque os bens culturais imateriais passíveis de registro pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) consistem naqueles que apresentam uma continuidade histórica, possuem relevância para a memória nacional e referências culturais de grupos formadores da sociedade brasileira.

A inscrição desses bens nos Livros de Registro é realizada consoante disposição do Decreto nº 3.551.  As indicações geográficas, por sua vez, conforme já explanado, são conferidas para regiões que se tornaram conhecidas como centros de extração, produção ou fabricação de bens e serviços com características específicas suas, sendo elas humanas ou naturais, especialmente quando do reconhecimento da espécie denominação de origem.

O registro dos bens culturais se dará em diferentes livros, a depender da espécie de bem cultural para a qual se está buscando a tutela, conforme preceitua o artigo 1º do Decreto nº 3.551.  Assim, os bens materiais poderão ser registrados em diferentes categorias, a saber: livro de registro dos saberes, livro de registro das celebrações, livro de registro das formas de expressão, livro de registro dos lugares.

Nesse aspecto, dentre os livros instituídos pelo Iphan, está o Livro de Registro de Saberes, o qual foi criado para receber os registros de bens imateriais que reúnem conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades. De um modo geral os saberes estão associados à produção de objetos e/ou prestação de serviços que podem ter sentidos práticos ou rituais, consistem em saberes relacionados à cultura, memória e identidade de grupos sociais.

A partir da análise dos bens levados a registro, percebe-se que muitos deles obtiveram o reconhecimento posterior do signo distintivo da indicação geográfica, como é o caso do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, registrado no Livro dos Saberes e também registrado no INPI como indicação geográfica. Desta forma, verifica-se que o que o registro no Livro dos Saberes leva em comum com a indicação geográfica é o fato de atestar um modo de fazer peculiar de uma dada população, sendo um conhecimento tradicional associado.

Como resultado de um novo modelo de produção, as indicações geográficas dão ensejo à revalorização das tradições, das práticas e dos saberes locais, ou seja, revalidam a identidade territorial. Assim, não se está a considerar estritamente a viabilidade econômica das indicações geográficas, aspecto que também se mostra relevante, porém, representa mais que isso, a atividade do artesanato, desenvolvida na maioria das vezes no âmbito rural, dá ensejo à manutenção das populações nessas localidades, afastando, com isso, o êxodo rural.

Desse modo, considerando que o Livro de Registro de Saberes,criado para receber os registros de bens imateriais que reúnem conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, os quais contemplam no seu conteúdo os saberes relacionados à cultura, memória e identidade de grupos sociais, deve se atentar para a importância desse instrumento como potencial de auxiliar o encontro de novas regiões com potencial de reconhecimento do signo da indicação geográfica. Isso porque há que se considerar a afinidade do objetivo desses dois instrumentos, aproveitando-se de todo o levantamento de dados já coletados quando do registro no livro dos saberes para que possam ser aproveitados para obtenção de indicação geográfica.


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