O DIREITO DO PACIENTE DE OPTAR PELA REALIZAÇÃO OU NÃO DO TRATAMENTO MÉDICO NO BRASIL (ortotanásia)

Maria Elisa Leal Cabral, Patrícia Fernanda Goldschimidt Boeck

Resumo


Sabe-se das evoluções na área da medicina. A cada dia novos tratamentos surgem, capazes, tanto de melhorar a saúde, como também de prolongar a vida das pessoas. Algumas anseiam por continuar vivas, independentemente do estado em que estão; outras tantas revelam o desejo pela vida, mas sob um olhar diverso, almejando estar autônomas até o fim, o que implica em dizer quando será o seu término, ou então, nesta impossibilidade, pretendem manifestar, seja por si ou por seus representantes, o que desejam ou não fazer quando estiverem adoecidas. Querem então optar dentre os tratamentos médicos prescritos aqueles que efetivamente ser-lhe-ão prestados, ou simplesmente recusar-lhes. Neste sentido é preciso refletir que o fim é fato. E falar da morte (muitas vezes) é um tabu. Sabe-se que acontecerá, mas evita-se o assunto talvez como forma de amenizar o fardo da finitude.

Permitir que um paciente, de forma consciente e esclarecida, escolha os procedimentos a que deseja submeter-se e também permitir-lhe optar pelo não recebimento de tantos outros, mesmo que sejam declarados imprescindíveis para a mantença da vida, é conferir a ele sua dignidade, permitir-lhe ser autônomo, valorizando as escolhas pessoais em detrimento dos desejos de terceiros.Através deste estudo, buscou-se verificar se no Brasil existe no ordenamento jurídico a possibilidade do paciente optar pela realização ou não de tratamento médico prescrito como imprescindível para a mantença da vida, e em caso positivo, verificar quais meios existem para o exercício da opção pelo tratamento ou sua recusa. Ainda buscou-se analisar, mesmo que brevemente, como o TJ-RS tem tratado do assunto em seus julgados.Para a realização deste resumo expandido foi utilizado como forma de abordagem o método dedutivo - consistente na utilização de pesquisa doutrinária e de legislação. Com o fim de construir embasamento teórico, se buscou doutrinas, destacando as divergências e convergências a fim de edificar um entendimento acerca do tema proposto com o escopo de trazer avanços no que toca ao assunto que é bastante polêmico.Ainda não existe no Brasil nenhuma lei federal que tutele a faculdade do paciente em optar pelo tratamento médico que lhe é prescrito como sendo imprescindível para a mantença da vida. O Código Civil (2017, www.planalto.gov.br) diz em seu artigo 15 que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Tal redação pode ensejar no pensamento equivocado de que sem risco de vida, a pessoa poderia ser constrangida a submeter-se a tratamento médico. E para evitar que este equívoco seja praticado, é preciso que sejamtrazidas ao conhecimento popular o que se tem entendido através de portarias e resoluções no Brasil. Antes, porém, necessário destacar que no Estado de São Paulo existe a lei 10.241/1999, sancionada pelo então Governador Mário Covas, que permite que o paciente, usuário dos serviços de saúde daquele Estado, possa recusar-se ao tratamento médico conforme se vê do artigo 2º, incisos VII, XXIII e XXIV da referida lei (2017, www.pge.sp.gov.br):Artigo 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: [...]VII - consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados; [...]XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida; eXXIV - optar pelo local de morte.Mais tarde, em 2006, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 1.805/2006 (2017, http://www.portalmedico.org.br) em que buscava regulamentar a ortotanásia, admitindo que os médicos limitassem ou suspendessem procedimentos e tratamentos que tinham por finalidade o prolongamento da vida do doente, incumbindo-lhes de fornecer cuidados no sentido de aliviar sintomas que os levassem a sofrimento fornecendo-lhes assistência integral, obviamente, com respeito à vontade do paciente ou de seus representantes legais.Segundo refere Nobrega Filho (2010) dita resolução foi questionada pelo Ministério Público Federal, em ação civil pública sob o nº 2007.34.00.014809-3. Sobreveio decisão que julgou improcedente afirmando então a validade da mesma. É importante dizer conforme Nobrega Filho (2010, p. 59) que “osdefensores da ortotanásia afirmam que tal prática apenas reconhece o momento natural da morte de um indivíduo, sem que se promova ou acelere esse processo”, sendo que referido autor ainda aduz que deve haver uma análise criteriosa a respeito do tratamento médico através da perspectiva de benefício para o paciente, sendo que a ortotanásia possibilitaria ao paciente que entrou na fase final de alguma doença, bem assim aqueles que o cercam de agir no sentido de enfrentar, querendo, o seu destino com alguma serenidade, na medida em que a morte não pode ser curada, aceitando-se que é o resultado natural da vida.Logo após, em 2009 o Ministério da Saúde editou Portaria 1.820 de 13 de agosto de 2009 (2017, http://bvsms.saude.gov.br) que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde havendo expressa menção da possibilidade de que o paciente possa escolher o local de morte bem como escolha dos tratamentos, quando houver, ou inclusive a sua recusa, consoante artigo 4º, Parágrafo Único, incisos X, XI:Art. 4º Toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortável e acessível a todos.Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe:[...]X - a escolha do local de morte;XI - o direito à escolha de alternativa de tratamento, quando houver, e à consideração da recusa de tratamento proposto;Posteriormente, em 2012, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.995/2012 (2017, http://www.portalmedico.org.br) que possibilita ao paciente dar as “diretivas antecipadas de vontade”, o chamado testamentovital. Nesta Resolução o artigo 1º buscou defini-las “como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Interessante é que nesta Resolução (2017, http://www.portalmedico.org.br) conforme o artigo 2º depreende-se que para os pacientes que estiverem incapacitados de se comunicar, ou de expressar de forma livre e independente suas vontades, permite-se ao médico considerar as suas diretivas antecipadas de vontade. Se o paciente tiver definido algum representante as informações deste serão consideradas pelo médico. Destaca-se ainda, e conforme dita resolução, que o médico desconsiderará as diretivas antecipadas de vontade, seja do paciente ou representante legal, caso, em sua análise, divergirem dos preceitos determinados pelo Código de Ética Médica. Ainda é importante ressaltar que as diretivas do paciente prevalecem inclusive sobre as vontades dos familiares, podendo o médico inclusive registrá-las nos seus prontuários desde que diretamente informadas pelo paciente. E finalmente, para sanar omissões, quando ditas diretivas não existirem, ou inexistindo representante legal escolhido pelo paciente, e inexistindo familiares, ou consenso entre os familiares, então deverá o médico recorrer ao Comitê de Bioética da instituição, ou em sua inexistência, à Comissão de Ética Médica do hospital ou Conselho Regional e Federal de Medicina a fim de buscar fundamentos para a sua decisão relativamente a conflitos éticos, quando julgar necessário e conveniente.Desta feita é importante dizer que o próprio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (2017, www.tjrs.gov.br, grifos próprios) em sede de recurso de apelação de número 70042509562, assim ementou:Constitucional. Mantença artificial de vida. Dignidade da pessoa humana. paciente, Atualmente, sem condições de manifestar sua vontade. respeito ao desejo antes manifestado. Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia.o desejo de ter a “morte no seu tempo certo”, evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocupação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir.E o mesmo Tribunal ementou na apelação cível de número 70054988266:Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudopsiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia,máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013)De tudo o quanto foi colacionado ainda é importante dizer, a fim de trazer uma importante reflexão ao leitor, que Dworkin (2003, p. 259, grifos próprios) faz importante consideração, qual seja, a de que[...] o direito produz o resultado aparentemente irracional: por um lado, as pessoas optam por morrer lentamente, recusando-se a comer, recusando-se a receber um tratamento capaz de mantê-las vivas ou pedindo para ser desligadas de aparelhos de respiração artificial; por outro, não podem optar pela morte rápida e indolor que seus médicos poderiam facilmente conseguir-lhes.Deste modo, muito embora não exista lei federal que possibilite expressamente a aplicação da ortotanásia, tem-se que o Conselho Federal de Medicina e o próprio Ministério da Saúde assim estabeleceram possível na forma de resoluções e portarias. Ademais, o testamento vital, meio pelo qual o paciente deixa claro e estabelecido suas “diretivas antecipadas de vontade”,pode ser escrito ou oral, tendo plena validade desde que de acordo com os preceitos éticos de medicina. Além disso, o TJ-RS, nos casos apresentados, tem respeitado as decisões dos pacientes valorizando assim a autonomia do sujeito que opta pela não realização do tratamento médico, seja por si ou por seus representantes legais.


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