OS “LIMITES DA LIMITAÇÃO VOLUNTÁRIA” DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DIANTE DO MÍNIMO EXISTENCIAL E DO NÚCLEO DURO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Resumo
A Constituição Federal brasileira de 1988 consagrou em seu texto a dignidade humana, e tal incorporação influenciou o direito privado e especialmente o Código Civil de 2002. Antes, o direito civil possuía um enfoque excessivamente individual, patrimonialista e influenciado pelo ideal burguês. Sendo assim, através do novo texto constitucional, surge a necessidade de colocar a pessoa humana como pilar central do ordenamento jurídico. Nesse contexto, reconheceram-se os direitos da personalidade como elementos jurídicos pertinentes a tal desiderato. Sendo assim, o Código Civil de 2002 tratou-se de positivar expressamente um rol exemplificativo de direitos da personalidade ao longo dos artigos 11 a 21.
A doutrina tradicional expõe a temática das características dos direitos da personalidade sem indagações, ou seja, restringe-se a descrevê-las. Em geral, possuem como características essenciais a intransmissibilidade, a irrenunciabilidade, o absolutismo, a extrapatrimonialidade, a imprescritibilidade, a vitaliciedade, a impenhorabilidade, a não sujeição à desapropriação e a não limitação.
Sobre os direitos da personalidade, vale fazer uma distinção entre o direito em si e o exercício do direito. A renúncia, total ou parcial, ao exercício de um direito da personalidade é a afirmação da autonomia da vontade da pessoa natural. É a partir dessa renúncia que o indivíduo pode ser o que ele é ou pretende ser, sentindo-se bem consigo mesmo. Ainda, a personalidade jurídica do agente fica intacta. Situação completamente distinta encontra-se quando uma pessoa perde a titularidade do direito. Nesse caso, não existe mais viabilidade para seu exercício, o direito da personalidade é extirpado. Além disso, a personalidade da pessoa natural é afetada (STANCIOLI, 2010, p. 98-99).
Em complemento, constata-se que a Constituição Federal adota, implicitamente, uma cláusula geral de tutela da personalidade como princípio fundamental da ordem jurídica constitucional brasileira. A Carta reconhece e tutela o direito geral de personalidade através do princípio da dignidade da pessoa, que se traduz em uma cláusula geral de concreção da proteção e do desenvolvimento da personalidade do indivíduo (SZANIAWSKI, 2005, p. 137). É a cláusula prevista no art. 1º, III, da CF. Em síntese, ela permite que a personalidade seja tutelada para além das hipóteses e formas tipificadas na legislação, sendo assim, ela torna os direitos da personalidade ilimitados no Brasil.
Quanto ao mínimo existencial, tem-se que a sua elaboração jurídica manifestou-se no centro do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, tendo uma ligação direta ao respeito, promoção e garantia da dignidade da pessoa humana. Desta forma, pode-se assegurar que o mínimo existencial é constituído por um agrupado de direitos, de qualquer geração, reconhecidos e não reconhecidos pelo Estado e que devem ser atendidos com o mínimo de dignidade humana (BOLESINA; LEAL, 2013, p. 23). Em termos mais rasos, entende-se que o Estado tem o dever de assegurar aos cidadãos pelo menos as condições mínimas para uma existência digna.
Por seu turno, o núcleo duro dos direitos fundamentais, na qualidade de limite aos limites, trata-se de uma garantia: a garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Apesar de ser uma criação notadamente alemã, constatou-se, a datar da sua consagração na Grundgesetz, um reflexo generalizado nas doutrinas e jurisprudências constitucionais de diversos outros países (NOVAIS, 2003, p. 779).
De qualquer maneira, a garantia de proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais visa para a parcela do conteúdo de um direito sem a qual ele deixa de possuir a sua mínima eficácia, findando para a consequência de não ser mais reconhecível como um direito fundamental. Deveras, a limitação de um direito fundamental não pode impedi-lo de um mínimo de eficácia. A ideia substancial deste pressuposto é a de que existem conteúdos invioláveis dos direitos fundamentais que se reconduzem a posições mínimas indisponíveis às intervenções dos poderes estatais (SARLET, 2010, p. 402). Em síntese, é o núcleo que cada direito possui e que o identifica minimamente, devendo ser resguardado contra ações que visem extinguir ou tornar irrelevante o direito.
Diferenciar o mínimo existencial e o núcleo essencial dos direitos fundamentais tem especial importância para tratar sobre as limitações voluntárias, que, segundo Godinho (2014, p. 143), “representam um ato de vontade manifestado por determinada pessoa, tendente a restringir, onerosa ou gratuitamente, o exercício dos seus direitos da personalidade”. Sendo assim, este comportamento de limitação possibilita dois meios, seja para limitar por conduta própria o exercício dos seus direitos da personalidade, seja para consentir que terceiros o façam. De um lado (a dimensão privada) tem-se a lógica de serem os direitos da personalidade a representação da individualidade de uma pessoa, possibilitando seu projeto existencial da forma que melhor lhe couber. De outro lado (a dimensão pública) reside a lógica de que certas questões devem atentar para as funções do direito (social, econômica, protetiva, etc.), mas, sobretudo, aos “limites dos limites” conectados à dignidade humana, sendo eles o núcleo essencial/duro dos direitos fundamentais e o mínimo existencial, impondo limites – nem sempre expressos – à fruição destes direitos.
Por fim, no que tange ao mínimo existencial e ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, deve-se ter em conta, primeiramente, que eles atuam como mecanismos de concretização (proteção e promoção) da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, ainda que ambos possam servir como argumentos para a fundamentação de eventual decisão (política ou jurídica) que acabe “limitando a limitação voluntária”, deve ter especial diligência ao lhes adotar como justificação. Isso porque há a grave probabilidade de acabarem transformando-se em pautas opressivas, como, por exemplo, quando se “limita a limitação voluntária” tendo por base um padrão conservador estabelecido em detrimento de um comportamento “não tradicional”. Logo, apesar de ser possível traçar um padrão de conduta, esse padrão sempre deverá ser contestado (reavaliado) caso a caso, pois, se não, não haverá espaço para a manifestação da diferença e do vanguardista.Texto completo:
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