A NOVA VISÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL: UMA ANÁLISE A PARTIR DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

Caroline Cristiane Werle, Jorge Renato dos Reis

Resumo


Tem-se por objetivo neste escrito demonstrar a visão contemporânea acerca da responsabilidade civil, a qual é fruto, principalmente, do fenômeno da constitucionalização do direito privado e, também, do princípio constitucional da solidariedade. Para tanto, três itens serão abordados em sequência, sendo eles: a constitucionalização do direito privado, os aspectos essenciais do princípio constitucional da solidariedade, e, por fim, a visão contemporânea da responsabilidade civil.

A análise do processo de constitucionalização do direito privado demanda uma abordagem histórica, a qual perpassa pelos modelos de Estado que se consolidaram ao longo do tempo. No Estado absolutista, o poder estava concentrado integralmente nas mãos dos monarcas, de modo que não havia qualquer controle e limitação frente a esse poder. Posteriormente, com o intuito de combater o absolutismo dos reis, ocorreram inúmeros movimentos revolucionários, que culminaram na Revolução Francesa de 1789. É nesse momento que o Estado Absolutista cede lugar para o surgimento do Estado Liberal (STRECK; MORAIS, 2014, p. 46-47).

O Estado Liberal, conforme dispõe Finger (2000, p. 86), estava “[...] baseado na igualdade formal, expressa na máxima segundo a qual todos são iguais perante a lei”. A partir desta concepção, os indivíduos passam a ser livres para contratar e serem proprietários (REIS, 2003, p. 773), sendo que nesse modelo a ação estatal era mínima, pois somente com o afastamento do Estado é que as pessoas poderiam regular seus interesses de forma autônoma e absoluta[1] (FINGER, 2000, p. 86).

Entretanto, o Estado Liberal, muito em razão da exagerada proteção concedida à autonomia privada, acabou gerando a exploração do mais fraco pelo mais forte, situação que desencadeou uma grande desigualdade entre as pessoas. Em face de tais aportes, não causa surpresa o declínio do Estado Liberal.

Nesse contexto, objetivando garantir a proteção dos direitos sociais, surge o Estado de Bem-Estar Social – ou Welfare State –, que distancia o poder público da sua posição anterior, a qual era caracterizada pela intervenção mínima, e o insere em um patamar ativo perante à sociedade, ou seja, o Estado passa a atuar em busca da justiça social (REIS, 2003, p. 777).

Muito em razão dessas mudanças, inúmeros reflexos permearam as Constituições que estavam nascendo mundo afora. Enquanto no modelo Liberal o catálogo constitucional traçava a estrutura organizacional do Estado e garantia determinados direitos individuais, no Estado de Bem-Estar Social a principal meta das Constituições consistia em transformar a ordem social e econômica vigente. Nesse âmago, os catálogos constitucionais começam a estabelecer princípios relativos a matérias que anteriormente eram reguladas pelo Código Civil, depositando em tais diplomas um caráter constitucional. Não por outra razão, a Constituição “assume o seu status de lei superior e passa a ser o centro do ordenamento jurídico, irradiando seus princípios normativos à toda legislação denominada infraconstitucional” (REIS, 2003, p. 778, grifado no original).

Em virtude dessa mudança de paradigma, nasce um novo Código Civil brasileiro, que supera os ideais patrimonialistas e individualistas caracterizadores do antigo diploma de 1916 e que passa a observar as premissas constantes na Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, observa-se que, agora, “todo o direito infraconstitucional é direito constitucionalizado, não se podendo, da mesma forma, ter um direito civil autônomo em relação ao Direito Constitucional” (FINGER, 2000, p. 94).

Em consequência de todas essas alterações ora mencionadas, abre-se margem para falar sobre o fenômeno da constitucionalização do direito privado, que é o grande responsável por implantar a ideia de pessoa no lugar do indivíduo. A partir dessa concepção a solidariedade social é enaltecida e a proteção do direito privado volta-se para a pessoa humana[2] (NEGREIROS, 2006, p. 11).

Diante de tais apontamentos, é possível dizer que o processo de constitucionalização visa submeter o direito positivo privado aos fundamentos de validade determinados pelo catálogo constitucional, ou seja, significa fazer uma releitura do Direito Civil à luz da Constituição Federal (REIS, 2003, p. 787), cabendo “ao intérprete reler a legislação civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar os valores não patrimoniais, a dignidade da pessoa humana, [...] e a justiça comutativa” (CAGLIARI, 2013, p. 21-22).

Em razão da superação do viés individualista traçado pelo Estado Liberal, nasce a concepção de que o ser humano é detentor de direitos sociais e, portanto, surge a necessidade do bem-estar social se sobressair em face dos interesses privados. É justamente nesse momento que passa a ser exigida a construção de uma sociedade marcada pelo ideal de solidariedade, o qual deve ser exercido tanto pelo Estado, quanto pelos indivíduos.

No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, é a partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que nasce uma preocupação direta em adotar o valor constante no princípio da solidariedade como uma das maiores premissas de toda a ordem jurídica e social. Nesse sentido, o princípio constitucional da solidariedade está previsto no artigo 3º, inciso I, da Magna Carta de 1988[3] e, assim sendo, possui um duplo sentido, qual seja: por um lado constitui um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico e, por outro, enquadra-se como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro.

O princípio em questão, consiste em um princípio jurídico de terceira dimensão e, assim sendo, possui força normativa e complementa outros direitos e deveres que se encontram difusos pelo ordenamento jurídico. Além disso, levando-se em consideração a força normativa da Constituição e a irradiação dos princípios e direitos fundamentais por todo o ordenamento jurídico infraconstitucional – fruto da constitucionalização do direito privado –, o princípio da solidariedade pode ser encarado como um vetor de interpretação para todas as condutas que são efetivadas sob sua égide (SARLET, 2010, p. 48-49).

Em face de tais aportes, é possível perceber o quanto a forma de encarar o ordenamento jurídico foi modificada em razão da constitucionalização do direito privado e, inclusive, do princípio constitucional da solidariedade, sendo que ambos os fatores são importantes personagens no processo de enaltecimento dos ideais de pessoa humana e de preocupação para com o próximo. Se o sistema jurídico passou a ser encarado mediante outro prisma, logicamente que todos os seus institutos também “sofreram” com o impacto causado pela constitucionalização do direito privado e pelo princípio constitucional da solidariedade.

Desta feita, abre-se margem para construir alguns apontamentos acerca do último fator a ser trabalhado nesse resumo: a responsabilidade civil. O instituto em voga, em linhas amplas, nasce com o objetivo de reparar algum dano causado por terceiro. Se no início das civilizações a aludida ferramenta era traduzida na ideia de “olho por olho, dente por dente”, atualmente não é mais assim. Antes, a prática judicial estabelecia que toda a vítima que se dirigisse aos tribunais deveria superar duas sólidas barreiras para obter a indenização: demonstrar o caráter culposo da conduta do ofensor; e comprovar o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e o dano. Com o passar do tempo, tal situação foi sendo abrandada, sendo que, atualmente, aquele que deseja obter uma indenização deve demonstrar, via de regra, três elementos: a conduta – positiva ou negativa –, o dano e o nexo causal.

Entretanto, é importante deixar claro que, face o sistema vigente – constitucionalizado em sua totalidade –, as ferramentas jurídicas não devem ser engessadas, especialmente porque seus efeitos devem respeitar a ordem jurídica e, acima de tudo, devem promover e proteger a dignidade da pessoa humana – logicamente que um sistema fechado e que não observa a realidade jamais conseguirá caminhar de mãos dadas com os preceitos constitucionais. Se há dano/prejuízo, há a necessidade de reparação, ou seja, é preciso que a harmonia seja reestabelecida. E é justamente nesse ponto que se alicerça a principal função da responsabilidade civil: repor a vítima, tanto quanto possível, à situação anterior à lesão – em todos os aspectos (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 14).

É imprescindível ter em mente que, ao mesmo tempo em que as codificações perdem importância – fruto da constitucionalização do direito privado –, os danos continuam se multiplicando em quantidade e intensidade, sendo que, na maioria das vezes, são tratados como algo sem muita importância. Percebe-se, aí, um efeito disparado pelo viés patrimonial: “aspectos de ordem econômica normalmente prevalecem em detrimento da preocupação com a tutela da pessoa humana e da sociedade [...]” (CATALAN, 2013, p. 33).

Desta feita, para que a responsabilidade civil esteja de acordo com a ideia constitucionalizada e, principalmente, solidarista, é preciso que haja uma certa maleabilidade de seus elementos. Urge que tais “filtros” estejam em consonância com a realidade cotidiana e com os preceitos constitucionais. Portanto, a prática judicial deve se voltar para a reparação integral dos danos, observando sempre o norte máximo do sistema jurídico: a dignidade da pessoa humana. É lógico que o patrimônio também é merecedor de tutela jurídica, mas isso não justifica que ele seja considerado tão importante quanto – e mais valioso que – a pessoa humana. A responsabilidade civil não deve visar apenas o responsável, mas, sobremaneira, a vítima ofendida por um dano (CATALAN, 2013, p. 34-35).

A partir dessas constatações, pulula a necessidade de assunção de um direito cujo vértice seja a constante busca pela promoção e respeito aos direitos fundamentais e, principalmente, pela valorização da dignidade da pessoa humana. A prática jurídica deve visar um direito que realmente repare os danos sofridos pela vítima, sendo necessário, para isso, uma certa erosão – ou maleabilidade – dos elementos formadores da responsabilidade civil. É preciso que a pessoa lesada se sinta compensada pelos danos sofridos, independentemente se a conduta do agente foi lícita ou ilícita, ou, ainda, se há ou não como responsabilizar o causador do dano em face da evidência do nexo de causalidade.


[1] Com o intuito de garantir a não intervenção estatal na vida dos indivíduos, surgiu, logo após a Revolução Francesa, o Código Napoleônico, que abarcava normas de caráter individualista e patrimonialista.

[2] Em face dessa lógica, ocorrem os seguintes fenômenos: a “despatrimonialização” do direito privado, que preconiza a predominância do princípio da dignidade de pessoa humana em face de todo o ordenamento jurídico; e a “repersonalização” do direito privado, cujo objetivo principal é (re)inserir o indivíduo e seus direitos no topo da proteção, seja sob enfoque do direito público ou do direito privado.

[3] Artigo 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária [...]”.


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