O RECONHECIMENTO DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA IMPLICAÇÃO PARA A ORDEM JURÍDICA DO ESTADO

Josias Michel Schott, Flávio Cassel Júnior

Resumo


Ao longo da história os direitos fundamentais foram concebidos como instrumentos de limitação do poder e de promoção da dignidade da pessoa humana por meio de sua institucionalização no denominado Estado Constitucional de Direito. Na medida em que o exercício do poder se espraiava para outros campos – do Estado para grupos sociais - e o conceito de dignidade se alterava, o Estado de Direito incorporava em sua Constituição outros direitos com novas funções, e atualizava a sua compreensão em relação aos já existentes. Cita-se, como exemplo, o direito à propriedade. O seu conteúdo hoje é diferente daquele que lhe era atribuído pelo Estado Liberal, no século XIX.

O primeiro Estado de Direito foi o Estado Liberal. Seus objetivos se circunscreviam na limitação do poder soberano do rei e na suplantação do Absolutismo Monárquico através da constitucionalização dos direitos fundamentais de primeira dimensão ou de defesa – direitos de liberdade e de propriedade. À época, à luz dos interesses burgueses, havia a necessidade de salvaguardar as liberdades dos indivíduos mediante a imposição de limites ao exercício do poder político (SARMENTO, 2004, p. 23).

Neste momento, o poder que se concentrava no executivo, precisamente na figura do rei, limitado, agora, pelos direitos fundamentais, irradia-se para o legislativo. Este órgão, representando fidedignamente os interesses da burguesia, converte-se no poder referencial do Estado liberal, pois a intervenção estatal na esfera individual das pessoas ficou condicionada, tão somente, a sua excepcional autorização mediante a edição de leis. Em outras palavras, a ausência de previsão legal nesse sentido impediria a ação dos órgãos estatais e autorizaria a ação dos particulares, irrestritamente. (LEAL, 2007, p. 9).

Assim, os direitos fundamentais, ao imporem um dever de abstenção ao Estado, que só poderia ser relativizado por meio de lei, passam a integrar o patrimônio jurídico dos indivíduos e a se revestirem de juridicidade perante o poder público. Aflora-se, aí, então, a chamada dimensão subjetiva e verticalizada dos direitos fundamentais. Seus titulares são os indivíduos e o seu destinatário o Estado.

Paradoxalmente, então, apesar da justificação e fundamentação dos direitos fundamentais estarem lastreadas no Direito natural, e o seu reconhecimento na Constituição do Estado, os seus contornos e a sua concretização foram confiados à livre e ilimitada conformação do legislador. A ideia, portanto, de que eles traduziriam valores superiores e limitadores do poder estatal não se aplicava mais ao poder legislativo a partir da consolidação do Estado Liberal (GORCZEVSKI, 2009, p. 95).

Nesta perspectiva, a lei, nos moldes apregoados pelo positivismo jurídico, elevava-se, independentemente de seu conteúdo, à condição de fonte absoluta e indiscutível do Direito. Ela se revelou tamanha naquele momento histórico que o próprio “direito era entendido como limite à liberdade individual, de tal maneira que o Direito seria uma contraposição à liberdade, que ficaria marcada pela ausência de Direito” (ERICHSEN, 2014, p. 22-23).

Diante disso, instalam-se dois sistemas jurídicos compartimentados e estanques entre si, posicionados paralelamente um em relação ao outro: o direito público, guiado pela Constituição, precisamente pelos direitos fundamentais individuais, que disciplinava a conexão entre indivíduo e Estado. E, o direito privado, regido pelas leis civis – o código civil -, que consagrava a autonomia dos indivíduos em suas relações particulares, calcada na premissa liberal de que todos eram iguais perante a lei (SARMENTO, 2004, p. 27).

Este modelo perdurou, fundamentando-se na teoria positivista do Direito, até o final da Segunda Guerra Mundial, quando, então, com vistas à potencialização do princípio da dignidade da pessoa humana, completamente esvaziado naquele período, sofreu profundas transformações. Este episódio, ao mesmo tempo em que significou o desprezo absoluto pelos valores mais básicos do ser humano, desencadeou, numa escalada jamais vista na história, o desenvolvimento de uma nova postura, tanto em âmbito internacional quanto nos domínios dos respectivos Estados, de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana através da concretização dos direitos fundamentais.

Assim, os países que se reerguiam a partir daquele momento sobre os escombros da guerra, em especial a Alemanha, decididos em evitar uma nova experiência, de proporções sem precedentes na história, de coisificação do homem, reconhecem expressamente em suas Constituições a importância dos direitos humanos para a proteção da dignidade de seus cidadãos. O princípio da dignidade, portanto, de mero valor retórico, eleva-se no fundamento central de justificação e sustentação de um novo modelo de Estado que se estruturava a partir de então: o Estado Democrático de Direito.

Esta mudança de paradigma foi, pela primeira vez, expressada através da Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, ao consignar expressamente no seu Art. 1º, a ideia de que os direitos humanos são à base da comunidade e, que vinculam diretamente os Poderes Legislativo, Executivo e Judicial (ERICHSEN, 2014, p. 21 e 25). Nestes termos, o Tribunal Constitucional Alemão, guardião da Constituição, ao ser instado a se manifestar, em 1958, no processo conhecido como o caso Lüth-Urteil, afastou a incidência de uma norma de direito civil, sob o argumento de que ela violou o direito fundamental à liberdade de expressão estabelecida na Lei Fundamental alemã.

Naquela oportunidade, a Corte, de forma histórica, reconhecia a dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Após reafirmar no aresto a função clássica destes direitos de salvaguarda das liberdades do indivíduo em face do Estado, ressalvando-se, portanto, a sua dimensão subjetiva, afirmou-se, numa evolução do raciocínio, que a Constituição do Estado não representa um documento axiologicamente neutro. As normas que reconhecem a proteção da dignidade humana e os direitos do homem como o fundamento de toda a comunidade humana, consagradas, em 1949, na Constituição de Bonn, suplantam definitivamente a ideia, até então vigente, de que os direitos fundamentais compreenderiam apenas uma estrutura formal de garantia individual e de restrição estatal (GALIZA, 2011, p. 53).

No seu conjunto, estes direitos passam a constituir “um sistema ou ordem objetiva de valores que legitima a ordem jurídico-constitucional do Estado, que condiciona constitutivamente toda a actuação dos poderes constituídos e que irradia uma força expansiva a todos os ramos do Direito” (NOVAIS, 2003, p. 57-58). Nesse sentido, destacam-se duas implicações dos direitos fundamentais para a ordem jurídica do Estado: a sua eficácia irradiante e os deveres de proteção por parte do poder público.

Como uma ordem objetiva de valores, estes direitos passam a irradiar seus efeitos perante todo o Direito e a condicionar, nos seus termos, as ações do poder público – dos poderes executivo, legislativo e judiciário-, e dos particulares. Nestas condições, eles impõem ao Estado o dever de protegê-los, inclusive preventivamente, contra atos agressivos advindos, tanto dos agentes públicos, quanto dos particulares ou dos Estados estrangeiros (SARLET, 2015, p. 153-154).

Verifica-se, portanto, uma amplificação nas funções desempenhadas pelos direitos fundamentais a partir do reconhecimento de sua dimensão objetiva. Eles passam a legitimar a concepção de que o Estado não apenas está obrigado a observá-los em face das investidas do Poder Público, enquanto direito de proteção ou de defesa, mas também a garanti-los contra agressões praticadas por terceiros em suas relações interpessoais (MENDES, 2014, p. 36).

Neste contexto, o direito privado passa a ser produzido e interpretado à luz dos valores e princípios constitucionais, na medida em que a Constituição irradia seus efeitos sobre toda a ordem jurídica do Estado (CERQUEIRA; REIS, 2013, P. 100). Nestes termos, a lei, que até então era a fonte por excelência do Direito, cede espaço para a Constituição, que passa a vincular axiologicamente todos os seus ramos, independentemente de sua natureza.

Torna-se, assim, mais tênue, ou até mesmo inexistente, a tradicional dicotomia defendida outrora entre os campos do direito público e privado. Pois, agora, todo o ordenamento jurídico do Estado se agrega em torno de um centro comum e irradiador de efeitos: os direitos fundamentais previstos na Constituição.

Diante disso, a autonomia privada, que se manifestava incensurável no Estado liberal, transforma-se, sob a égide do Estado Democrático de Direito, num espaço juridicamente vinculado aos direitos fundamentais. O indivíduo, agora, ao exercer a sua liberdade em face de outrem, deverá fazê-lo em respeito ao conjunto de valores da comunidade proclamado na Constituição.


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