O CORPO NA TINTA OU A TINTA NO CORPO? NARRATIVAS A PARTIR DO ENCONTRO ENTRE CRIANÇAS E ADULTOS
Resumo
O presente trabalho emerge a partir das vivências e reflexões no encontro entre crianças e adultos, e na intenção de compor uma interpretação narrativa no percurso desta vivência com as crianças, encontrarmos na escrita, no movimento entre as palavras, novos significados, novos caminhos. A escrita, neste sentido, significa movimentar-se em torno da experiência por nós vivida. Não chegamos a conclusões, nem as buscamos. A escrita se desenhou como um caminho com suas fraquezas e forças que tornou possível que esta experiência em nós acontecesse.
A escrita nos fez refletir, produzindo sentidos e criando realidades. Escrever é uma forma de estar em linguagem, de estar aderida com e no mundo, e por estar em linguagem ao fazer nos transformamos. Assim o que transcorremos aqui, não é um processo cumulativo do percebido, antes é a metamorfose do corpo que “extrai uma aprendizagem ao forjar pensamento na abertura de começar algo no mundo: um gesto, uma palavra, uma interrogação, uma marca” (RICHTER, 2002, p.13), uma escrita. Em Bachelard (1996), a metamorfose é o meio de concretizar de imediato um ato vigoroso: a conquista de outro movimento, outro tempo. Só mudamos em nós o que em nos permanece: aquilo que tem razões para recomeçar. O que não muda, morre, cristaliza. A metamorfose permanece na mudança, no corpo operante que sente e faz mediante suas rupturas e suas descontinuidades nas experiências dos seus erros retificados. Aqui, tornou-se para nós relevante considerar com Bachelard (1988, p. 85) que “uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Essa infância, aliás, permanece como uma simpatia de abertura para a vida”.
É interessante pensar que as imagens de infância permanecem em nós mudando, surgindo como história toda vez que contamos, iluminadas em sua existência poética. Ao estar com as crianças, sonhamos a criança que fomos nos reencontrando e sentindo o mesmo de outro modo, ou de um modo muito semelhante.
A infância nos faz começar o mesmo de um jeito diferente. No momento em que acompanhamos um processo de uma criança, percebemos que é a melhor e mais sólida maneira de entrar com mudanças e transformações sociais. Encontramos ali, os começos da linguagem.
As crianças possuem um corpo produtor de história e cultura, um instrumento para realizar sonhos, uma potência e força. Assim como a criança narra, ainda que um vocabulário restrito, o corpo dela também revela todo o seu processo numa linguagem bem mais intensa e universal. Wallon (1942) toma o corpo como ponto de partida e constrói uma teoria que contempla a integralidade do desenvolvimento humano. Desde muito cedo as crianças se comunicam e se colocam em relação com o mundo através de seu corpo. Toda esta perspectiva está para além de um simples ato motor, sendo uma das formas de se expressar em relação aos seus sentimentos emoções e pensamentos. Quando dizemos que a criança é um corpo, todas as dimensões estão presentes. Então ela não tem somente um corpo, ela é este corpo por inteiro no sentido da vivência integral, pois não tem o corpo separado da mente.
A criança no ato de manipular a tinta é desafiada pela expectativa de transformá-la e constituir possibilidades de agir. A criança investiga a superfície colorida, e ao investigar, imagina. Nada substitui a vibração, a sensualidade, a tactilidade e a provocação da matéria.
O que nos mobilizou a escrever é o desafio de aprender a pensar com os que estão entrando em linguagem. O que emergiu do encontro entre crianças pequenas, adultos e a tinta?
Em nossa concepção, viver experiências com as crianças significa intencionalmente planejar e organizar o espaço, o tempo e as materialidades. A intenção, é na repetição destas condutas a cada encontro, favorecer que as crianças possam se sentir encorajadas a ensaiar gestos no mundo.
As crianças já esperam ansiosas este momento. O espaço já havia sido planejado e preparado. A tinta é sempre um convite para ação. Quando as mãos tocaram a tinta aconteceu o inesperado. Primero uma cor encontrou a outra. E as cores, com a ação das crianças, transformaram-se em outras cores. A mistura já não estava somente no papel, a mistura espalhou-se pelo corpo, um corpo em constante transformação, que tem que aprender a participar das coisas do mundo pela tomada de decisão de iniciar a ação gestual e material que faz aparecer algo que configure a captura do agir enquanto execução transformadora e transfiguradora do corpo sensível capaz de fazer ser o que não é. É neste fazer e no pensar sobre este fazer com tinta que, a criança constituirá sua linguagem na modalidade da pintura. Assim como em qualquer outra modalidade visual.
Aproximar a experiência e a educação da infância é sublinhar a importância da intencionalidade pedagógica em favorecer acontecimentos de maravilhamento, surpresa e estranhamento. O que emergiu deste encontro foi a capacidade de as crianças serem desafiadas a estabelecer outras relações, outros nexos, outras conexões, outras sensações. Deste ato emergiu a alegria, a surpresa, o riso desmedido, a agitação do e no corpo, a excitação. A alegria se instalou e foi impossível permanecer imóvel.
Assim, objetivamos nesta escrita, pensar a infância em diferentes tempos e espaços potencializando a sua ação com e no mundo, buscando romper a cisão entre corpo e mente a qual requer uma docência que preze por uma infância compreendida como o lugar dos começos. Uma docência que envolva as crianças no esforço do ato de aprender a operar diferentes modos de estar em linguagem, incorporando o mundo no qual vivem, transformando e construindo significados. Problematizamos o encontro entre as crianças e a tinta, em seu poder de redimensionar nossa relação sensível com as coisas e com o espaço que nos enlaça, que provocou nas crianças situações que as desafiaram a tomar decisões, ou seja, a ter iniciativa em ações ainda não previstas em modelos e experimentos. Entendemos que, convém ressaltar a relevância desta iniciativa que está relacionada ao sentido dado pela criança no tempo de operar a materialidade. Aqui a alegria advém justamente do desafio de transformar a manipulação da tinta em significados coletivos compartilhados através do encontro.
Palavras – Chave: Infância; linguagem; corpo; criança.
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ISSN 2965-0615