"POIS EU VENHO PAGAR-LHE ESSA DÍVIDA": ANÁLISE DA DEFESA DA HONRA FEMININA NO RIO GRANDE DO SUL DO SÉCULO XIX A PARTIR DO PROCESSO CRIME DE ANA AURORA.

CARLOS GILBERTO PEREIRA DIAS, EDUARDO FINGER

Resumo


Ana Aurora do Amaral Lisboa (1860-1951), rio-pardense, professora, católica, era de uma família entusiasta do Partido Liberal. Em suas produções poéticas, entre versos que cultuavam sua religião, prestava homenagens políticas aos preferidos de sua inclinação. Além dela, sua irmã Carlota do Amaral Lisboa, também era professora, poetisa e partidária dos liberais em Rio Pardo. No contexto de disputas políticas com o advento recente da república, eclodiu uma sangrenta guerra civil no Rio Grande do Sul. De um lado, o Partido Republicano Rio-grandense (PRR), o principal líder era Júlio de Castilhos. No outro lado, a organização política do Partido Federalista Brasileiro (PFB) criado em 1892, liderado por Gaspar Silveira Martins. Uma poesia intitulada "Salve! Ao general Gomercindo Saraiva" desencadeou no processo crime em questão. Esta poesia, que foi alcunhada de "fósforo poético", foi escrita por sua irmã Dona Carlota em setembro de 1893, ano do início da Revolta da Degola. Major Antero Fontoura, rival político castilhista, obteve em 1893, o poema de Carlota Amaral e foi o responsável pela prisão de três irmãos Lisboa em represália política. Após uma carta provocativa de um irmão Lisboa, em resposta, o Major enviou uma carta anônima à Ana Aurora. O teor da carta era de ofensa à honra de Ana Aurora, na suposta ideia de Aurora a autora da poesia. O fato desencadeador do processo crime de Ana Aurora ocorreu na noite de 24 de setembro de 1894. Acompanhada por mais quatro pessoas, entre irmãs e amigas, Ana Aurora dirigiu-se à casa de negócios do Major. Ao entrar no recinto comercial de Fontoura, Ana Aurora perguntou por ele aos que frequentavam o recinto e na afirmativa do Major, Ana Aurora perguntou se ele lembrava que dia era aquele. Antero respondeu não saber, Aurora afirmou ser o dia que completaria um ano da prisão de seus irmãos acusando-o de ser o responsável. Dito isso, Ana Aurora sacou um revólver do bolso e apontou-o para o Major dizendo as seguintes palavras: "pois eu venho pagar-lhe essa dívida". Em seguida, um dos amigos presentes do Major retirou o revólver, com apenas uma bala, das mãos de Ana Aurora. Este estudo pretende analisar a autodefesa da honra feminina nas relações de gênero em uma sociedade sul-rio-grandense nos fins do século XIX, em meio à Revolução Federalista. A análise deste processo crime foi orientada pela perspectiva teórica da antropologia cultural e da nova história cultural. O processo metodológico envolveu três momentos: a revisão bibliográfica acerca do tema, o levantamento de fontes documentais (processo crime de Ana Aurora), e a análise dos materiais coletados. A alegação de Ana Aurora, protegida pelo Código Criminal da época, era de que não estaria cometendo um crime, mas se autodefendendo pelo crime contra honra sofrida (carta anônima). Pode-se concluir que ao abordar a honra ferida e sua desforra, comumente associado ao masculino, era incomum a autodefesa da honra feminina numa sociedade sul-rio-grandense no final do século XIX, marcada pelo estranhamento da participação de mulheres em espaços públicos, ou melhor, na negação de cidadania às mulheres até este século. O singular desse caso foi o rompimento de Ana Aurora com o papel social submisso destinado ao seu gênero com a sua autodefesa, no intuito de expor o Major à vergonha na relação honra/vergonha. Desta maneira, Ana Aurora tornou-se uma representação de 'mulher-símbolo'.


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