A DICOTOMIA JURÍDICA PÚBLICO-PRIVADO NO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONALIZADO

Iuri Bolesina, Jorge Renato dos Reis

Resumo


Antes de tudo: o que é uma dicotomia? Bobbio (2010, p. 13-15) irá sustentar que uma dicotomia se constrói sobre dois requisitos fundantes: a) a existência de duas esferas conjuntamente exaustivas e reciprocamente exclusivas (ou excludentes); b) e que a divisão seja total e principal, de modo que todos os elementos encontrem lugar em uma ou outra esfera e que outras dicotomias sejam secundárias diante da grande dicotomia. Assim, para Bobbio (2010, p. 14), público e privado seriam esferas específicas e dignas de estudos próprios, de sorte que, genericamente, o privado seria tudo aquilo que não é público ou o público seria tudo aquilo que não é privado. Em assim pensando, a tensão entre o público e o privado faz com que essas esferas limitem-se e condicionem-se reciprocamente – de modo que o alargamento de uma implica na diminuição da outra –, encerrando qualquer possibilidade de uma terceira esfera, a qual não seria nem pública, nem privada, sendo, na verdade, uma esfera “mais ou menos” (LACERDA, 2010, p. 55).

Todavia, de forma específica, a distinção entre o que é “público” e o que “é privado” nunca foi objeto consenso. Neste sentido, vale recordar o estudo elaborado por Saldanha (2005), no qual demonstra que as ideias de público e de privado, e portanto também a percepção e eventuais conteúdos, em termos gerais, variam no espaço e no tempo. Logo, o mesmo pode-se dizer do “direito público” e do “direito privado”, os quais tendem a transformarem-se reflexivamente nas variações dos espaços público-privado (SARMENTO, 2010, p. 29).

No campo jurídico, e sob um enfoque didático, costuma-se afirmar que são três as principais teorias (ao menos no ordenamento brasileiro) que definem o que seja direito público e direito privado, sendo elas: a) teoria da prevalência do interesse (onde é direito público aquilo no que prepondera o interesse público e direito privado aquilo no que prepondera o interesse privado); b) teoria da natureza das relações jurídicas (segundo a qual direito público é aquele no qual a relação jurídica impõe a parte privada sua subordinação perante o Estado e direito privado onde há paridade entre as partes envolvidas) e; c) teoria subjetiva (para a qual o direito público é aquele que tem a figura do Estado – em sentido amplo – na função de autoridade pública e o direito privado é aquele no qual a figura do particular participa com outro particular ou com o Estado, desde que não como autoridade pública) (SARMENTO, 2010, p. 30-31; LÔBO, 2013, p. 22).

Note-se que, originalmente, a concepção da dicotomia público-privado é de viés moderno-burguês, o qual fazia com que o direito público e o direito privado traçassem suas próprias linhas históricas. Ao tempo que o direito público era sempre visto como atrelado à Constituição e ao Estado e seus interesses, o direito privado via-se amarrado ao Código Civil, a algumas legislações esparsas e aos particulares e seus interesses.

Todavia, como destaca Gusmão (2001, p. 193), essa lógica dicotômica há muito já se mostra insuficiente, pois excluiria campos híbridos, no quais as esferas pública e privada se misturam. Seriam exemplos deste âmbito o direito do consumidor e o direito do trabalho, onde há aclarados interesses público e privado agindo de modo concorrente na relação jurídica. Óptica semelhante é adotada pela teoria dos interesses difusos, no sentido de que existe a esfera do direito público, a esfera do direito privado e a esfera dos direitos difusos (NUNES, 2011, p. 173-176). Pode-se mencionar igualmente neste conjunto a teoria das intersecções jurídicas entre o público e o privado (REIS; CERQUEIRA, 2013, p. 9; LORENZETTI, 1998, p. 84) que irá sustentar a existência de um grande espaço onde estarão inúmeras inter-relações jurídicas que serão de interesse concomitante do público e do privado, mas ainda assim, resguardando um pequeno espaço para as relações de cunho apenas público e outro para as relações de nota apenas privada.

Em que pese todas essas posições diferenciadas, todas partem do mesmo denominador comum: a dicotomia público-privado. Mesmo as teorias híbridas ou de intersecções fazem isso, pois apenas redimensionam e mantém a dicotomia, dela valendo-se para dizer que existe um espaço comum de diálogo entre o público e o privado.

Isso não acontece, por exemplo, nas teorias da unificação ou sobreposição entre o público e o privado, as quais se opõe a lógica dicotômica e, portanto, igualmente a noção de intersecções por entender que no atual estágio da constitucionalização do direito há uma evidente unicidade, coerência e integridade do sistema jurídico que deve ser observada e respeitada (SARMENTO, 2010, p. 50; LUDWIG, 2002, p. 112).

Isto é, um dos principais efeitos da constitucionalização do direito foi a transformação da ideia de dicotomia público-privado, para uma ideia de “assenhoramento das relações por parte da Constituição”. As relações jurídicas deixam de ser (só) de direito público (ainda que possam ser de interesse público) e (só) de direito privado (ainda que possam ser de interesse privado), para serem constitucionais ou inconstitucionais. Para ilustrar, mesmo o casamento, um dos principais “contratos privados” é recheado de condições “públicas”, dentre as quais, por exemplo, limites e proibições para casar (e razão da idade ou da pessoa – irmãos, pais, etc.).

Logo, a tradição jurídica de desenvolver noções distintas para o direito público e para o direito privado não mais se sustenta no atual estágio da ordem jurídica brasileira. Crer nesta dicotomia equivale a desconsiderar todas as transformações trazidas pela constitucionalização do direito a partir das abordagens dos direitos fundamentais e da hermenêutica contemporânea. Neste sentido, direito público e direito privado passam a ser dimensões de um mesmo objeto, o ordenamento jurídico, que é uno e deve ser íntegro e coerente.

Não há separação jurídica e, assim, não há dicotomia jurídica. Porém, isso não significa que a dicotomia social público-privado seja invalida. Ela permanece presente.  O que se quer afirmar é a importância de perceber que, notadamente nas relações jurídicas, os conteúdos público e privado são complementações e não ambiguidades. Essa complementariedade é, também, intrínseca num e noutro conteúdo, ou seja, no conteúdo privado está o público e no conteúdo público está o privado. O público interessa ao privado e vice-versa.

Destarte, a definição da dicotomia serve mais para fins didático-operacionais e menos para a análise contextual. Logo, entende-se que a defesa sobre a existência de uma dicotomia jurídica público-privada dá-se na mesma lógica: mais para fins didático-operacionais e menos para fins de análise (interpretação) contextual. Tais questões, a título de efeitos concretos, representam a incindibilidade da ordem jurídica – não havendo falar em público e privado enquanto dicotomia –, a qual deve sempre ser observada sob uma perspectiva ampla e complexa, onde público e privado, em abstrato, possuem o mesmo valor e, ao mesmo tempo, dialogam constantemente, um interessando ao outro.

Afinal, a realidade social e a ordem jurídica dividem-se em blocos de público e privado somente por critérios de conveniência. Em realidade, tal divisão não se opera, pois não há como dividir momentos exatos e cadenciados de acontecimentos ora apenas públicos, ora apenas privados. Em verdade cada acontecimento (jurídico ou não) tem um sistema dialogal entre um aspecto de relevância privada e outro de relevância pública, o que não faz (pelo contrário, evita) que seja alocado em um ou outro bloco exclusivamente, pois, em assim sendo, a dicotomia sequer existe.

Dito isso, conclui-se que, em tempos de direito privado constitucionalizado, falar-se em dicotomia público-privado ou em intersecções jurídicas entre o público e o privado é contraproducente, pois atrasa e, em certa medida, opõe-se à plena constitucionalização do direito. Pelas razões expostas, melhor seria tratar o público e o privado, no âmbito jurídico, como dimensões de cada direito ou dever, respeitando a unicidade, a coerência e a integridade que a ordem jurídica teoricamente impõe e efetivamente carece.

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