OS DIREITOS DA PERSONALIDADE À LUZ DO PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO E REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO
Resumo
Impulsionados pelo processo de constitucionalização e repersonalização do Direito Privado, a partir da Constituição Federal de 1988, os direitos da personalidade começam a ganhar contornos cada vez mais definidos, tanto é que o Código Civil de 2002 reservou a eles um capítulo específico, elencando um rol ilustrativo e não fechado, adequando-se à lógica de um sistema constitucional aberto, abrindo inúmeras possibilidades ao intérprete da norma e dos preceitos constitucionais, o qual deverá guiar-se pelos princípios constitucionais norteadores, tendo como diretriz axiológica máxima o princípio da dignidade da pessoa humana para o pleno desenvolvimento da pessoa possibilitando dessa forma o livre exercício dos direitos da personalidade.
Neste sentido, o presente artigo resumido, destina-se a abordar brevemente o desenvolvimento histórico dos direitos da personalidade, `a luz dos processos de constitucionalização e repersonalização do Direito Privado, bem como, suas características jurídicas clássicas. Finalizando-se com a discussão sobre o princípio do livre desenvolvimento da personalidade e a necessidade de sua tutela, por parte do Estado, para propiciá-lo a todos os cidadãos.
Os direitos da personalidade são direitos fundamentais, pois atribuídos invariavelmente à pessoa humana, embora nem todos os direitos fundamentais sejam da personalidade. A história dos direitos da personalidade confunde-se e coincide com a dos direitos fundamentais. O rol constitucional de direitos fundamentais assegura também a proteção a interesses de cunho patrimonial, como o direito à propriedade, bem como direitos coletivos, como o de representação por entidades associativas e sindicais e o direito de greve, os quais, muito embora tenham relação indireta com a proteção da pessoa, não são tidos como atributos essenciais da condição humana e, portanto, não são tecnicamente classificáveis como direitos da personalidade. Por proteger bens que são inerentes à pessoa, “[...] os direitos da personalidade não têm como objeto um bem patrimonial, eis que o seu objeto são os bens inerentes à subjetividade humana. [...]” (CANTALI, 2009, p. 133).
Em lição de Szaniawski (1993), aprende-se que a personalidade abarca todos aspectos e características individuais do próprio sujeito, sendo estas inerentes à pessoa humana. É através da personalidade que o sujeito poderá acessar os demais direitos e bens jurídicos. Por sua vez, os direitos da personalidade visam a proteção da dignidade humana em suas vicissitudes, frente a abusos ou ameaças, para a garantia do pleno desenvolvimento da pessoa.
A partir da segunda metade do século XIX é que começaram a surgir os primeiros contornos dos direitos da personalidade, primeiramente na esfera do direito civil. Conforme Schreiber (2014), a expressão direitos da personalidade foi inicialmente concebida por jusnaturalistas franceses e alemães, com o objetivo de designar especificamente direitos inerentes e inatos ao homem, os quais seriam preexistentes ao próprio reconhecimento pelo Estado, pois essenciais à condição humana, e sem a existência dos quais todos os outros direitos subjetivos perderiam o sentido de existir. Schreiber (2014) ensina ainda que se deve enxergar a noção de personalidade sob dois aspectos distintos. O primeiro deles é o aspecto subjetivo, ou seja, está ligado a capacidade que toda pessoa (física ou jurídica) tem de se tornar titular de direitos e de obrigações, no sentido de pretensão de direitos. O segundo aspecto, o objetivo, liga-se ao conceito de personalidade como um conjunto de características e atributos essenciais à pessoa humana, o que é considerado objeto de proteção pelo ordenamento jurídico.
Mais particularmente, no decorrer do século XX, após as atrocidades da Segunda Grande Guerra Mundial, é que os direitos da personalidade ganharam contornos mais definidos, sendo incorporados gradativamente como cláusulas gerais, visando a proteção e a promoção da personalidade, nos textos de várias constituições da Europa e da América. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, afirma expressamente, logo em seu preâmbulo, que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).
É fundamental salientar, portanto, que foi a partir da modificação que se operou nos sistemas jurídicos no contexto do pós-guerra, na metade do século XX, que os direitos da personalidade foram tomando contornos mais definidos. Este foi o grande marco, embora já houvesse muitos institutos os quais tratavam da tutela da pessoa ao longo dos séculos pregressos (CANTALI, 2009).
A dignidade humana passa a ser reconhecida então como um valor síntese, reunindo todas as esferas essenciais de realização e desenvolvimento da pessoa humana, sendo assim, um princípio norteador nas constituições contemporâneas. É fundamental também considerar que a dignidade humana não pode ser descrita de forma rígida, mas sim deve ser contextualizada e apreendida por cada sociedade de acordo com cada momento histórico levando em conta sua herança cultural.
O rol de direitos da personalidade expressos no Código Civil de 2002, contemplou principalmente o direito ao próprio corpo, o direito ao nome, o direito à honra, o direito à imagem e o direito à privacidade. Entretanto, este rol é meramente ilustrativo, podendo decorrer destes, outros direitos da personalidade. A Carta Magna de 1988 contempla expressamente alguns dos direitos da personalidade, todavia os que não se encontram expressamente positivados podem ser deduzidos implicitamente, tendo sempre como norteador o princípio da dignidade humana, por força do artigo 1º, inciso III da Constituição Federal (SCHREIBER, 2014).
Os direitos da personalidade alcançam força normativa, principalmente como desdobramento da dignidade da pessoa humana como fundamento principal da república, bem como por sua estreita confluência com os preceitos do artigo 5º, que dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais. Também são tutelados os direitos da personalidade por via do artigo 3º, incisos I e IV, que como objetivos da república trazem como diretriz a construção de uma sociedade justa e solidária, a promoção do bem-estar coletivo e a vedação à atos discriminatórios (REIS, 2015).
Como demonstra Cantali (2009), o estudo dos direitos da personalidade é inexoravelmente orientado pelas balizas dos fenômenos da constitucionalização do Direito Privado, e bem como dos seus respectivos processos de repersonalização e despatrimonialização, afirmando ainda que os direitos da personalidade nada mais são do que direitos fundamentais consagrados pelas Constituições. Representando, para a referida autora, os direitos da personalidade, a máxima expressão da repersonalização do direito.
Sendo assim, aos direitos da personalidade, sob a perspectiva do Estado Constitucional contemporâneo não se aplica qualquer segregação de natureza pública ou privada, tendo sido hodiernamente superada esta dicotomia em função de todo processo de constitucionalização.
Enfim, dentro de uma perspectiva constitucional contemporânea, pode-se afirmar que os direitos fundamentais, capitaneados por seu princípio vetor, a dignidade da pessoa humana, proporcionam força e vazão concreta na incidência da normativa constitucional, assegurando e garantindo de forma substantiva os direitos essenciais da personalidade.
Portanto, a tutela dos direitos da personalidade projeta-se para todos os ramos do direito que, através da releitura de seus institutos sob a égide da normativa constitucional, fará incidir, tendo por base a cláusula geral de dignidade da pessoa humana, os direitos personalíssimos redesenhados pelo processo de constitucionalização e repersonalização.
Particularmente os direitos da personalidade possuem características clássicas que lhe são peculiares. A intransmissibilidade, por exemplo, a qual significa que tais direitos não podem ser transferidos de uma pessoa a outra, nascem e morrem com a mesma pessoa, não podendo ser alienados a outrem. Característica esta, determinada expressamente no artigo 11 do Código Civil, que abre a descrição do rol dos direitos da personalidade no referido estatuto. De forma contrária ao que ocorre com os direitos de propriedade ou de créditos, os quais são alienáveis, por exemplo, aos herdeiros do falecido, observa Schreiber (2014) que os direitos à imagem, à honra, à privacidade, bem como todos os demais direitos da personalidade são exclusivamente de seu titular.
Tem-se ainda como características clássicas dos direitos da personalidade, a vitaliciedade, caracterizada por estar o direito essencialmente colado ao sujeito desde sua concepção até sua morte; a inalienabilidade, depreendendo-se a impossibilidade de algum negócio jurídico versar sobre sua alienação; a irrenunciabilidade, pois o seu titular não pode despir-se desses direitos; a indisponibilidade, que veda atos de renúncia ou limitação dos direitos da personalidade; a oponibilidade contra terceiros, que dá a esses direitos eficácia erga omnes, garantindo o seu respeito frente a todos.
As definições e significados em torno da pessoa e sua personalidade ocuparam a mente de estudiosos desde os primórdios dos tempos. A antropologia e a filosofia alcançaram as mais promissoras delimitações neste sentido. Tendo estas diferentes áreas da ciência buscado referencias na ontologia, ou seja, no liame evolucional do ser humano, considerando características que lhe são inerentes, lograram definições plausíveis como, ser a pessoa um ente diferenciado dos demais sujeitos que existem no mundo, pois é dona do seu próprio futuro o qual relaciona-se com o passado, formando um imbricado de relações que contrai com o mundo e com seus semelhantes, assumindo o comando de sua realidade ontológica (ALMEIDA, 2012).
É dever do ordenamento jurídico tutelar a pessoa em seus diferentes aspectos, tanto individuais, remontando-se à clássica limitação do Estado na garantia de não violação de direitos, bem como no que concerne a proporcionar a todos os cidadãos as adequadas condições para o desenvolvimento de sua personalidade, o que hodiernamente liga-se ao dever de proteção do Estado.
Neste sentido, na busca da garantia da dignidade, todos são titulares de determinados direitos fundamentais à existência do ser físico, psíquico e social, os quais, agasalhados pelo condão da dignidade humana, concretizam-se por via dos direitos da personalidade.
O livre desenvolvimento da personalidade passa por questões bastante subjetivas, sendo que, para cada ser humano, sua realização pessoal percorre diferentes caminhos e significados, os quais darão um sentido único à sua existência. Devendo ser assegurado pelo ordenamento jurídico a liberdade, o livre arbítrio para que o sujeito possa desenvolver-se singularmente da forma que entender melhor, sendo respeitadas as diversidades inerentes ao ser humano naquilo que ele é, e naquilo que poderá vir a ser. Isso significa o respeito às escolhas de cada um, o respeito à livre expressão de suas singularidades (ALMEIDA, 2012).
Sendo assim, se o princípio da dignidade humana figura como valor maior e fundamental, ocupando o centro normativo constitucional, e como seu objeto e fim a pessoa, à qual encontra-se ínsita a personalidade, o livre desenvolvimento da personalidade é também valor que deve ser perseguido por todo e qualquer Estado Democrático de Direito em uma perspectiva de Estado Constitucional.
O livre desenvolvimento da personalidade pressupõe o exercício da autonomia privada, a qual remodelada a partir do processo de repersonalização, não pode mais ser tida como absoluta, bem como não está reservada apenas ao exercício de direitos patrimoniais, mas também a direitos personalíssimos, extrapatrimoniais. Sendo que estes direitos de autonomia decorrem da dignidade humana, e encontram também nela mesma o seu limite, devendo-se respeitar direitos alheios. As condutas orientadas pelo livre arbítrio da autonomia privada devem ser exercidas de acordo com a ordem jurídica, tendo como referência e limite, a dignidade humana (CANTALI, 2009).
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