AUTONARRATIVAS COMO MÉTODO DE PESQUISA: SOBRE A COMPLEXIDADE DE NARRAR-SE
Resumo
Narrar-se é uma prática constitutiva do ser humano e sua subjetividade. Afinal, narrar é organizar sistematicamente algo que já está lá, vivido fisicamente ou no plano subjetivo do pensamento. Trata-se de uma questão existencial, na medida em que o indivíduo não suporta a ausência de sentido frente às coisas que precisam ser ditas e narradas.
Contudo, cumpre destacar: o ato de narrar é inerente a cada contexto sócio-histórico. Cada época conta com suas formas narrativas (SCHOLLES; KELLOG, 1977). As sociedades narram e são narradas em razão do contexto sócio-técnico discursivo que lhe acompanha. Nesse viés, em nem todos os períodos históricos as autonarrativas foram bem-vistas no âmbito acadêmico ou devidamente exploradas quanto às potencialidades no que tange à reflexão docente e a auto-constituição dos educadores.
Na contemporaneidade, entretanto, as autonarrativas se proliferam nos espaços acadêmicos, redesenhando a ecologia comunicacional da sociedade também no âmbito investigativo. A modo de ilustração, podemos dizer que já não interessa mais debater se a narrativa compõe ou não o fato real ou a verdade. Interessa, sim, saber as significações tecidas e imbricadas no narrar, pois as próprias noções de “realidade” e “verdade” são compreendidas como uma construção narrativa que, mesmo quando sobre o outro, remete àquele que narra, de alguma maneira. Tudo o que é dito, é dito por um observador (MATURANA; VARELA, 1997), e a “realidade”, por sua vez, é conformada a partir da explicação da experiência desse observador implicado, que é um ser vivente, um ser “que se observa a si mesmo sendo, o ser que se pensa a si mesmo no seu processo de viver, de existir, numa tentativa de explicitar as recorrências do autor” (GAI, 2009, p. 139).
Assim, temos por objetivo discutir as narrativas enquanto método/instrumento complexo de subjetivação na perspectiva do GAIA. Entendemos, que, por meio das autonarrativas, não só nos (auto)constituímos em um processo complexo, mas também ratificamos a inseparabilidade entre o “viver” e o “conhecer”, com base na Biologia da Cognição (MATURANA; VARELA, 1997). É isso o que pretendemos apresentar, por meio (1) da ilustração dos conceitos teóricos com os quais operamos para estudar as narrativas e (2) de olhares sensíveis lançados sobre autonarrativas recentes de estudantes e pesquisadores envolvidos com o GAIA e seus projetos de pesquisa.
No que tange ao nosso suporte teórico, para sustentar a perspectiva das autonarrativas enquanto método complexo de pesquisa, resgatamos três aspectos mais notórios subjacentes à nossa acepção de “narrar”:
a) Toda narrativa (ficcional ou não) traz implícita a ideia de invenção (GAI, 2009). Narrar, enquanto o ato de transformar uma experiência em linguagem, nos leva à compreensão e ao entendimento da experiência, seja em relação ao fato propriamente dito, seja em relação à constituição mental/cognitiva de quem narra (GAI, 2009, p. 137). Aquilo que não é narrado é como se não tivesse acontecido, enquanto o que é narrado, aconteceu, de fato ou em nossa mente. Narrar é um jeito de organizar os sentidos, os pensamentos, as vivências e, por conseguinte, o nosso mundo.
b) Uma narrativa é, invariavelmente, uma autonarrativa. Seja por abordar a si, seja por partir de uma visão de um observador incluído, toda narrativa parte de um sujeito e, consequentemente, resulta de (e em) um processo autonarrativo. Evidentemente, os termos “narrativa” e “autonarrativa” podem ser (e eventualmente são) usados como sinônimos, mas grifar a presença desse narrador, que já não pode mais ser apagado, mostra-se necessário.
c) Narrar é um processo autopoiético. Para Gai (2009, p. 142), “as narrativas são tessituras de palavras, são linguagem”. E, conforme Maturana, os seres humanos acontecem na linguagem. Logo, narrar leva, inevitavelmente, às reflexões sobre a vida e suas práticas, o que reverbera na constante reflexão e reorganização de sentidos do narrador, sobre si e sobre suas narrativas. Conhecer, a si e ao mundo, é sempre experiência vital. Em melhores palavras, a autonarrativa nos constitui, “(...) pois, ao narrarmos a nossa vida, vamos inventando e configurando o estilo de existir que escolhemos para nós, alimentando nossa autonomia para conduzirmos nossa vida (PELLANDA; BOETCHER, 2017, p. 69).
Em termos metodológicos, como forma de dar materialidade e visibilidade àquilo que investigamos enquanto grupo de pesquisa, resgatamos princípios teóricos centrais que atravessam nossas reflexões e nossos fazeres no GAIA, por meio de extratos de autonarrativas produzidas por nós mesmos, sobretudo nos dois últimos anos (2017 e 2018). Os extratos selecionados advêm, especialmente, de diários de bordo de quatro sujeitos participantes do GAIA na condição de bolsistas de iniciação científica (nível de graduação) ou de pesquisadores (nível de mestrado ou doutorado). A escolha por aqueles sujeitos primeiros, os bolsistas, dá-se por entendermos que eles, naquilo que é narrado em seus diários de bordo das experiências vivenciadas, em especial no Projeto IPad, ilustram e materializam os eixos teóricos norteadores do Grupo. Os pesquisadores, por outro lado, ao apresentarem suas autonarrativas, explicitam, no nosso entendimento, um amadurecimento teórico e metodológico daquilo que estamos compreendendo como marcadores teóricos de suma importância na nossa trajetória de grupo de pesquisa.
Os resultados de nosso estudo sobre os extratos analisados indicam como principais marcadores teóricos presentes nas autonarrativas a ontoepistemogênese e a auto-organização. A partir dos extratos de autonarrativas destacados, materializamos nosso processo enquanto sujeitos e enquanto grupo de sujeitos que exercita o viver e o fazer pesquisa na perspectiva da Complexidade (MORIN, 2011), como forma de conhecimento e de vida. O processo de ontoepistemogenese, de complexificação (pelo ruído) e de auto organização se mostram inerentes ao nosso modo de sermos pesquisadores e nos incluirmos nos processos e fenômenos que pretendemos investigar.
Palavras-chave: Autonarrativa; Complexidade; Autoconstituição.
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ISSN 2965-0615